Lá em casa tem uma caixa de sapatos. Na verdade, mais de uma. Várias. Enfiadas num fundo de armário. Dentro delas, durante anos, fui acumulando coisas que não quero deixar pra trás. Lembranças. Boas lembranças, na maioria. No último domingo, depois que Manuel me deu um beijo babado e me entregou um porta-retrato pintado por ele na escola - com uma foto descabelada e linda -, guardei-o na mais nova das minhas caixas de sapato. E pensei que Duda Mendonça também deve ter as dele.
Não acredito no que diz Duda Mendonça. Em quase nada. Os publicitários, de uma forma geral, vendem mentiras. Não há demérito nisso. Todos nós, de um jeito ou de outro, fazemos isso diariamente. Os jornalistas mentem, os cabeleireiros mentem e os técnicos de futebol não ficam atrás. Somos cascateiros a maior parte do tempo. Os publicitários apenas são mais bem pagos para isso. Melhor para eles.
Ainda assim, no meio de seu último depoimento à CPI dos Correios, Duda falou a verdade. E não era sobre mensalão, financiamento de campanha, remessa de dólares para o exterior ou sobre favorecimento para licitações em estatais. Enquanto o assunto foi esse, Duda manteve-se fiel a seus princípios profissionais e criou mentiras convenientes ao cliente. Mas foi verdadeiro quando disse que queria sair dali e abraçar seus filhos. Levei fé. É possível que Duda Mendonça - como eu - também guarde seus filhos numa caixa de sapatos.
É uma espécie de reserva moral guardada numa caixa de papelão da Sapasso. É para ali que corremos a cada vez que fazemos algo errado. Todo mundo faz algo errado. Ou fez. E se arrepende disso. O arrependimento, no ser humano, é tão natural quanto a mentira. E a dor que ela provoca na gente. O arrependimento de Duda, no entanto, deve ser maior que o meu. Sua escala de pedir penico tem seis dígitos e é expressa em US$. A minha não. São pequenas mentiras, omissões, cretinices ditas aqui e ali, piadas de mau gosto, injustiças, palavras que ferraram alguém um dia, deboche, cinismo, covardia. Coisas que me causam vergonha. E, quando quero me ver livre delas, quando estou prestes a pedir arrego, recorro ao mundo ideal das minhas caixas de sapato.
Ali dentro estão uma camisa das Diretas Já, o recorte do jornal com minha aprovação no vestibular de Geologia em 1982, uma foto do meu pai com a camisa do Casco Escuro, uma foto da minha mãe de trancinhas, uma edição de Pergunte ao pó traduzida pelo Leminski, camisas de criança com mãozinhas coloridas impressas, um lacinho que roubei de uma calcinha da minha mulher e ela nem sabe, o registro de um fim de semana em Angra com amigos amáveis e águas limpas, um tíquete do Louvre, uma faixa do Botafogo campeão da Conmebol em 1993 (com nomes de Perivaldo II, Cley, William Bacana em letras de purpurina), uma carta de amor ridícula, outra carta de amor ridícula, fotos de irmãos abraçados com a gente, fotos de amigos abraçados com a gente, uma dentadura completa formada de pequenos dentes de leite e um mundo de coisas que me fazem automaticamente feliz. Um mundo perfeito.
Quando Duda Mendonça falou em abraço nos filhos, na verdade estava se referindo a esse mundo perfeito. Ele também deve ter o dele. Ou tinha, sei lá. Acho que perdeu. Às vezes a gente demora pra burro a se lembrar de nossa caixa de sapatos.
Renato Lemos escreve às quintas no Jornal do Brasil
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